Hora extra
 



Contos

Hora extra

Joana Hammermeister


Passava das nove em uma sexta-feira à noite e eu ainda estava no escritório. Isso deveria ter servido como algum tipo de presságio. Não era um costume trabalhar até tarde, mas havia um contrato milionário em jogo.

As buzinas dos carros da cidade que nunca dorme eram abafadas pelo grosso vidro que separava a minha sala do tumulto no mundo lá fora. Em meio à toda poluição sonora, uma sirene se destacou ecoando em minha cabeça. E não de forma metafórica.

Veja só, quando você mora em uma cidade que recebe mais de cinquenta milhões de turistas por ano, sirenes não significam grande coisa. Roubos e assassinatos estão para a Big Apple assim como tornados estão para o Oklahoma. O problema daquela sirene era o fato de ela ter continuado a soar logo abaixo de mim.

Quando me virei para trás, não foram as luzes giroflex manchando os prédios de vermelho e azul que chamaram minha atenção, mas sim, a figura pequena e esguia tentando se equilibrar no parapeito do prédio à minha frente. O vento soprava seus longos cabelos cor de avelã. Eu vi sua boca abrir e mexer conforme ela falava com alguém às suas costas. Não qualquer alguém, bombeiros, dois bombeiros que provavelmente usavam um discurso pronto para convencê-la a repensar sua escolha.

Lá embaixo, formou-se uma multidão além dos policiais e paramédicos. Sendo sincera, eu não acho que os curiosos estavam preocupados de verdade com a mulher, eles apenas queriam encontrar uma forma de fazer parte daquele drama.

Ela parecia ter a minha idade, talvez até um pouco mais nova. E, considerando que aquele era um distrito comercial, eu podia dizer que ela também estava fazendo hora extra em plena sexta-feira à noite. O que poderia ter acontecido entre o momento em que ela acordou naquela manhã e o momento em que ela decidiu que pular de um prédio era sua melhor escolha? É pouco provável que ela tenha acordado com essa ideia, afinal, quem trabalharia um dia inteiro se tivesse a intenção de se matar logo à noite?

Seus olhos estavam cheios de uma paz que eu só conseguia encontrar nos meus sonhos. Ela usava um conjunto de linho carmesim, a saia-lápis na altura dos joelhos e o blazer sob uma camisa preta, a qual eu acreditava ser de seda. Fui inundada por uma percepção desconcertante, porque se eu desviasse a atenção do outro lado da rua e me concentrasse no vidro à minha frente, eu veria uma cópia dela. Nós duas saímos de casa naquela manhã com a mesma roupa, o mesmo cabelo cor de avelã e a mesma intenção de trabalhar até a exaustão. A diferença é que eu voltaria para casa enquanto ela viraria uma poça de tripas e miolos esfacelados sobre a calçada. No dia seguinte, ela seria apenas estatística. Mais um número em uma lista.

Um terceiro bombeiro entrou na minha visão, preso à uma corda descendo pelo prédio. Eu sabia o que ele iria fazer porque tinha visto o mesmíssimo acontecimento em uma série da tv semanas antes. Aparentemente, ela também.

A mulher olhou para cima, para o homem quase perto o suficiente para empurra-la para trás. Olhou para trás, para os bombeiros que continuavam insistindo para que ela não pulasse. Olhou para baixo, para as pessoas assistindo aquele show de merda que se desenrolava acima deles. E olhou para frente, para mim. E mesmo sabendo que ela não podia me enxergar, eu senti que ela me viu. Senti que ela olhou através dos vidros espelhados e soube que eu estava ali.

Então ela abriu um sorriso imperturbável e deu um passo para a frente.

Não fiquei para assistir à queda. Ao invés disso, dei meia volta, desliguei o computador e fui embora do escritório. No saguão do prédio, optei por sair pela porta lateral a fim de evitar a multidão horrorizada.

E nunca mais fiz hora extra.


Joana Hammermeister é uma catarinense de 26 anos que, desde criança, nutre o sonho de se tornar escritora. Apesar de ser formada em ciências contábeis, sua grande paixão sempre foi o mundo literário.

 

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